quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Génesis (ou a criação de algumas coisas importantes) - agora na íntegra...

- Até compreendo que tenham de comentar outra vez, ou não, ou não...







Um tal de Deus, indivíduo já com alguma idade, não se sabe bem qual, mas a rondar os milhões de anos, viu-se confrontado, a certo ponto, com a solidão que o circundava e, após voltas e voltas na sua mente e na vazia austeridade que o habitava, e farto de criar animaizinhos e animaizões de estimação que não comunicavam com ele a não ser por estranhos grunhidos, que o próprio não compreendia e que os entendia como uma qualquer anomalia de fabrico, resolveu encetar uma tarefa mais árdua e ambiciosa.

Propôs-se a si mesmo, desse por onde desse, a edificar algo que sustentasse o equilíbrio da total perfeição, naquela bola azul cheia de água mais salgada e menos salgada que, em tempos, teve a triste, ou não, ideia de criar e que agora teria de ser o curador-mor.

Num daqueles soalheiros dias que também criara, enquanto aparava a extensa barba que igualmente inventara, pôs-se a ponderar numa continuação de si próprio. Simultaneamente, ia observando as espécies a procriar e os descendentes que se iam desenvolvendo e, num falso pranto de mágoa, decidiu que aqueles seriam os últimos dias em que andaria por ali, naquela bola azul cheia de água, a falar sozinho e a cuspir para o chão, enquanto não inventava o tabaco.


Ainda amadureceu na ideia de que para existir o tabaco teria de ter artesãos para o materializar. Hesitou nessa concepção e concluiu que, sendo ele Deus, não seria complicado criar uma pequena plantação de tabaco de uso caseiro e instalar uma acanhada tabacaria vendendo algum do produto não sabendo ainda bem a quem e, aproveitando a embalagem empreendedora, inventar os impostos sobre o mesmo. Paralelamente, até pensou numa destilaria, sem ter bem a consciência do que tal seria, mas achou a ideia engraçada, logo à partida.


Como se sentia solitário há uns milhões de anos, pegou numa folha de papel e num lápis, que criou na altura, e iniciou a elaboração de um esquema. Dividiu-o por secções e departamentos, onde idealizou que se necessitasse de alguém como ele, os denominaria de qualquer coisa como humanos, derivado de um conceito que já tinha pré-definido: Hu, de grito de revolta, pensado por ele próprio por ser um vocalize que faria barulho, e eco, junto das imberbes comunidades que já tinha concebido, e Manos, de manufactura, outra palavra que inventara na hora, ou de Mano, porque era filho único e isso chateava-o descomunalmente e até o esboço de um irmão de armas lhe daria jeito para enfrentar a solidão de governar tantos milhões e milhões de hectares povoados por meia dúzia de animais um bocados estúpidos.
Além do mais, precisava de ideias novas para a flora e para os minerais, área para a qual não se sentia muito à vontade.


E também, obviamente, de assim dar azo à utilização das mãos sem ser só para acariciar a milenar barba que lhe caía da cara, e pensar no que haveria de fazer, enquanto avaliava a falta de uma mulher nos seus horizontes. Não sabendo ao certo o que isso seria, uma mulher. Deixou esse plano maquiavélico para mais tarde, contudo, deixando transparecer um rasgado auto-elogio por ter pensado em tão bela ideia. Melhor do que a do irmão, pensou.


Para melhor apreciar o assunto, de criar um ser mais inteligente do que uma tartaruga de cem quilos e que vive uma porrada de anos, um dinossauro que visualmente é giro mas que não interage senão com ele próprio, uma garoupa gigante com barbatanas ou num lagarto que se disfarça consoante o habitat, excelente invenção aliás, resolveu ir até uma praia, conceito genuíno e característico de um deus como deve de ser, e por lá reflectir no que haveria de fazer para não se sentir tão só. Mais que não fosse para não, durante uma sesta à beira-mar, ser atropelado e esmagado por uma manada de parvos mamutes em fúria.

À mente vinham-lhe desígnios como a omnisciência, a omnipresença e a omnipotência, mas nada disso lhe fazia algum sentido, pois só poderia debater essas ideias consigo próprio e o espectro da neurose e da esquizofrenia assolava-o, algo que lhe arrepiava a tão estimada barba.


Nesse dia, e instantaneamente, concebeu as plantações de tabaco e as oliveiras, o que lhe conferia o gozo de, para além de poder comer as fantásticas azeitonas, poderia também extrair-lhes o caroço para poder fazer bagaço, tinha acabado de engendrar a primeira destilaria da história. Pegou nas tais folhas de papel que tinha criado e registou com agrado outra bela descoberta.


Decretou, a partir dessa jornada, plantá-las, às oliveiras, sempre que pudesse, um pouco por toda a bola azul que governava sozinho, por enquanto. Quanto a esse mistério que denominara de tabaco, ainda cogitava sob tal ideia e sobre o que fazer com aquela planta aromática, após o desenvolvimento da planta se tornar visível e utilizável.


Na areia molhada, viu algumas parecenças com o cognominado barro e em vez de criar figurinhas ridículas de casais com parras a proteger os órgãos genitais, optou por tentar criar, numa fase inicial, um irmão.

Após algumas tentativas falhadas, em que os primogénitos ora saíam gordos, ora demasiado magros, também outros, no processo final teriam três braços ou quatro orelhas, aí reparou que a solução estaria no fabrico de um modelo em série. Decidiu, então, criar a primeira linha de montagem da história, neste caso, seria uma linha de montagem dos irmãos de Deus.


Alguns anos depois, e profundamente farto de aturar tantos irmãos imperfeitos e de ver tanta ovelha tresmalhada e dispersa nas suas atitudes e comportamentos, ponderou encerrar a fábrica, e correspondente linha de montagem irregular. Porém, deparou-se com a primeira manifestação operária da recém-criada humanidade, ainda que só de irmãos. Considerou isso uma traição capital e, nesse momento, cometeu o fratricídio original e com uma cruel armadilha, onde o engodo era o de atrair os irmãos, defeituosos e menos defeituosos, para um apelativo banquete e fechou-os numa sala sem janelas, alimentou-os de bifes de javalis bebés e de seguida libertou na sala todas as mães dos pequenos bácoros deliciosos. Estava consumada a primeira grande extinção da humanidade, embora ainda e só de 34 indivíduos.


Ainda no mesmo dia, inventou a primeira caçadeira de canos serrados e aniquilou maior parte das fêmeas e acabou, de certa forma, por comer também os irmãos, se bem que algumas delas já teriam defecado bastante, previamente a serem abatidas com vários cartuchos no lombo.


A visualização daquela tenra carne a apodrecer, nem Deus conseguia comer tanto nem queria engordar mais, levou-o a conceber um sistema de conservação de alimentos que denominou de caixa de sal, só que a carne ficava demasiado salgada e isso causava-lhe uma sede enorme, que o bagaço do caroço de azeitona não saciava e aí a opção clara foi espremer frutos para o interior de metades de casca de coco, não sem antes inventar o martelo e a palhinha para usufruir da água de coco, o que também lhe causava uma sede um bocado chata.

Numa fase menos boa, deu por ele a falar sozinho e a congeminar novas invenções, mas sempre com o triste sustentáculo de não ter com quem as partilhar e com o firme receio de criar outra linha de montagem que resultasse na insurreição que fora a anterior. Todavia, ia anotando, nas tais esplêndidas folhas de papel que inventara, que sempre que atentamente observava as outras espécies que criara, estas tinham um ritual estranho onde se envolviam intimamente e partilhavam momentos raros de prazer e de alguma dor sustentável e pensou que também seria capaz de fazer aquilo, mas sem saber com o quê ou com quem.


Quando conheceu a emoção que era a irritabilidade, embrulhava as folhas de papel com veemência e atirava-as contra o que estava mais perto, em dado momento, ao jogar uma delas contra uma planta mais próxima, atentou na bela combinação que faziam. A planta que, até à data, lhe servia unicamente para acalmar as dores de dentes evidenciava novas utilidades e procurou-as separar, aproveitando as folhas da planta. Primeiro mastigou-as e não apreciou muito o repasto, posteriormente, cheirou-as com vigor e ficou sem sentidos algumas horas. Ao acordar, voltou às experiências, próprias de um deus omnipotente, e enrolou-as numa folha de papel, mas faltava-lhe algo de eficaz e admirável. Contemplou a figura e ao colocar aquele disforme tubo na boca sentiu um aroma aprazível, mas nada que o convencesse.

O conceito do romantismo e da sedução sempre fora algo que desejava inventar, para não perder o engenho e a prática de criar coisas novas, aí determinou, para espanto dos quadrúpedes anti-tabagistas que o circundavam, e que o eram em segredo partilhado, inventar os fósforos e, consequentemente, desatou a fumar que nem um desalmado em fim de estação existencial, mas dado que era imortal, isso pouco o arreliava.

Enquanto fumava no seu cume favorito, que tinha denominado de alto da torre, e onde com a caçadeira de canos serrados disparava sobre os quadrúpedes anti-tabagistas que lhe mijavam a plantação de tabaco, constatou que queria algo mais da vida e ponderou em, definitivamente, criar alguém para o acompanhar nas tardes à beira-mar e na partilha dos fumos naquele vértice de rocha.


Dedicou-se à obra, e depois de muitos esboços e hesitações resolveu criar a mulher que, numa primeira fase denominou de apenas Aquela. Os modelos iniciais ora saíam com barba, ora falavam demais e davam demasiadas opiniões descabidas e isso irritou-o um bocado.

Ao fim de algumas semanas, e muita tosse provocada pelo papel com que enrolava o tabaco, decidiu-se por plantar arroz, inventando-o obviamente, para, não só reduzir a quantidade de irritantes patos na zona que com o implicante grasnar não o deixavam concentrar-se na invenção da humanidade, mas também para aprimorar um papel mais fino e cortês para a garganta dolorida.

Nessa etapa, construiu um modelo interessante de Aquela, não só esteticamente, mas também ao nível da personalidade, já que apesar de ser algo implicante, mas não em demasia, desafiava-o para novos e estimulantes desafios, andando perto dele sem qualquer decoro, mas com uma decência admirável.


Num certo dia, quis Deus, afiambrar-se de Aquela e levou um estalo na cara muito a preceito, outra coisa nova para ele. Considerou a ousadia interessante e certificou aquele modelo como o exemplo a seguir na evidente linha de montagem que teria de ultimar.


Seguidamente a tentativas e tentativas de possuí-la, como os outros seres estúpidos e irracionais que tinha criado o faziam com as suas congéneres, e depois de estaladas e estaladas sem fim, ela lá cedeu e Deus lá descobriu a razão do contentamento parvo de certos habitantes que o circundavam, aquilo era porreiro e poderia assim concretizar uma linha de montagem natural, embora tivesse que criar vários modelos de Aquela, agora denominada de Maravilhosa Criatura, até que os seus descendentes produzissem sementes suficientes para continuar a sua obra fantástica.

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