segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Quando deu por si, alguns supostos apoiantes do seu plano revolucionário dormiam profundamente e outros, os mais afoitos e guerrilheiros, já lhe tinham roubado os restos de comida de que se tinham conseguido apoderar no local. Outros, os eternos vagabundos, já estariam, há muito, em parte incerta.


Belchior, compreendeu, finalmente, que não poderia existir qualquer esperança que o seu empolgado discurso, e respectivos ideais de conquista, resultassem na tão esperada revolta dos canídeos.


Subitamente, começou a escutar ao longe um chamamento, pensou na tal voz que, diariamente, espera escutar e num ápice encetou uma feliz corrida em direcção à silhueta que o aclamava. Quando lá chegou e viu mais uma vez que a ração de granulado seria a sua refeição diária, cravou, com toda a força que pôde, os dentes na perna da senhora Maria que, caindo abruptamente para o chão, não teve outra reacção a não ser proteger-se com uma cadeira, evitando assim males maiores, físicos e psicológicos.


Ainda hoje, quando Belchior pensa naquele dia, pondera na acção que tomou sem necessidade alguma. E, durante mais um dia de banalidades no canil municipal, ainda tem tempo para ponderar a melhor forma de encetar a sua nunca adiada revolução.

Usualmente, à mínima distracção do tratador, mija-lhe para os sapatos com a elegância que só ele sabe.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Sempre que podia, Belchior, durante as suas longas horas de concentração passiva, engendrava o seu infalível plano de conquista. A sua condição subserviente e falsamente bajuladora não se coadunavam com a sua sede de glória que, inevitavelmente, chegaria.
Porém, havia pormenores que o chateavam um pouco, como levantar-se cedo todas as manhãs, tomar banho, esse um dos grandes entraves à revolução, e ter de começar a respeitar os outros em locais como a praia, principalmente por não poder, a partir do momento em que era rei e senhor da situação, correr que nem um desalmado no areal e roubar as toalhas e lanches aos mais distraídos.
Outros pormenores como não poder roubar chinelos e meias fedorentas aos donos e outros objectos dos amigos destes ou de, volta e meia, fazer outras divertidas burrices próprias de um canino, começavam a fazer-lhe confusão, já que, simplesmente, não teria a possibilidade de calmamente, nos períodos de maior depressão, urinar nos locais ditos proibidos, como a sala de estar ou nos carros dos vizinhos.



Tudo isso fazia-lhe um bocado confusão. Se ser líder era isto, então, talvez preferisse continuar a ser um despreocupado escravo de luxo dos humanos.


Claro que coisas como ir cortar as unhas à força, levar vacinas dolorosas e ser tratado como um boneco animado era ligeiramente estúpido, mas talvez fosse a compensação natural de poder fornicar na rua com vários parceiros, femininos e masculinos.
Coisa inata e perfeitamente natural, achava Belchior.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O seu descontentamento era de tal ordem que visionava idas ao supermercado onde seria ele próprio a elaborar a lista de compras, vestindo um ridículo fato de treino azul-escuro e onde seria ele a ajeitar os testículos disfarçadamente enquanto procurava o telemóvel ou tirava a carteira para pagar todos aqueles sortidos caríssimos de marcas estrangeiras, prontos a tirar qualquer cão, ou cadela, do sério.



Ainda na sua visão de ida às compras, regozijava-se por ter deixado os seus donos fechados no carro apenas com uma pequena fresta de ar para poder respirar, enquanto outros cães passavam e se metiam com eles, fazendo figuras de perfeitos anormais.


O regresso a casa, isso sim, seria a vitória absoluta, onde entre o cheiro de pequenos brindes gustativos que lhes provocariam algo próximo da demência, os humanos seriam trancados na mala do automóvel, sem apelo nem agravo.

sábado, 17 de outubro de 2009

Aquele aspecto inócuo, ainda que altivo e a roçar o farrusco, apesar de horas e horas a lamber-se e que pouco lustro lhe davam, sempre lhe tinha feito confusão. Sempre que podia, conferia, sem que os donos o soubessem, o seu boletim de identificação e lia dados como “Raça: Indefinida”, “Cor: Incerta” e “Tonalidades Adicionais: Nenhuma”.

Nesse depressivo momento do dia, elaborava, ou melhor, reformulava, o seu plano de investimentos, onde a primeira prioridade seria ele próprio gerir um cabeleireiro para cães, onde pudesse concretizar um dos seus sonhos de vida: fazer as tais madeixas louras que lhe conferissem um aspecto de superioridade, canina no mínimo, ao ponto de colocar os humanos em prevenção, perante uma eventual revolta dos, supostos, melhores amigos.


Nesses legítimos momentos de delírio via, na sua mente a preto e branco, o controlo absoluto do comando da televisão, até engendrava planificações semanais dos filmes e programas a ver, tal como delineava ele próprio o percurso a fazer nos curtos passeios que os seus donos, diariamente, se esforçavam por lhe dar.


Entre outras medidas que tomaria, sobressaía o seu lugar à mesa da família, ainda que sem talheres, mas com guardanapo, não fossem julgar que o novo rei da zona seria um porco imundo, sem maneiras.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Quando se levantava, e emergia dos seus belos sonhos de conquista, nem que fosse a altas horas da madrugada para chatear os seus donos e invadir-lhes o seu território mais privado, o seu quarto, reflectia no facto de se chamar Belchior.


Invariavelmente, olhava-se aos espelhos disponíveis na casa, onde se lambia e penteava, como os vidros que dão acesso à marquise e nas pequenas vidraças das portas da sala, para ele sempre fechadas a não ser que estivesse sob vigilância, outro ponto no seu manifesto que queria alterar, e orgulhava-se do seu porte e fazia dele motivo de inveja para com os rafeiros solitários da rua, embora os auxiliasse nas suas questões principais de sobrevivência, designadamente nos problemas sindicais relativos à partilha dos, anteriormente referidos, contentores do lixo, aos locais mais sujos onde urinar e defecar e, sobretudo, que traseiras de supermercado partilhar, mormente, quando estava em questão a constante invasão de território pelos vizinhos sem vacinas de ruas adjacentes.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Belchior, um Cidadão Descontente




Sempre achou o seu nome demasiadamente humano, mas dada a circunstância de pouco poder fazer quanto a isso, Belchior, aceitou esse baptismo caseiro como algo a levar com ligeireza. O que contava era que teria de desempenhar o seu papel social com mestria e responsabilidade.



Embora se achasse um bocado o rei da zona periférica que habitava, o nome de Belchior levava-o, constantemente, a delirar com um reino maior onde impunha comportamentos e normas, mesmo que fosse um território que teria de compartilhar com esses seres complexos e fascistas, como eram os humanos. Criaturas munidas de vícios, preconceitos e manias que só atrapalhavam o normal desempenho da espécie canina, uma raça em ascensão, nos últimos milhares de anos, e que só a sua existência, dos humanos, impediam a ascendência, tida como lógica, dos caninos ao poder.


Na última reunião, no local do costume, ao fim da rua, junto aos contentores de lixo, e antes que chegassem os humanos, os tais que eram empregados da câmara municipal e que além de os perseguirem com fins pouco claros, lhes surripiavam a sobremesa do dia, ou seja, os restos frios de refeições desses indiferentes, designados de seres humanos, Belchior impôs, junto dos seus semelhantes, o seu plano que queria como revolucionário e, essencialmente, como uma conduta que só traria aos humanos menos chatices e maiores benefícios, sempre com a premissa de as benesses canídeas serem sempre o primeiro objectivo nesse processo de pacífica insurreição.


Esta era a sua óptica de uma revolução calma e ordeira.


Até ponderou a partilha do poder, desde que eles, os famigerados humanos, não prejudicassem o processo revolucionário em curso.